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quarta-feira, 21 de março de 2012

GEORGE CLOONEY, KONY 2012 E AS LENTES DO MUNDO - AS CRIANÇAS CONTINUAM SENDO INVISÍVEIS 
Los niños siguen siendo invisibles
The children are still invisibles 
No momento em que escrevo são 23:38 do dia 20 de março de 2012.
  

O vídeo Kony 2012 já foi visto por 83.734.012 pessoas. Não o trato com desprezo. Em primeiro lugar, porque ele pretende divulgar uma visão inegavelmente humanitária de um fato desconhecido, ainda que de forma ingênua e talvez precária. Em segundo lugar, porque esse vídeo foge à linha de um velho radicalismo ideológico conservador e tem a coragem de mostrar cruamente o quanto é falso supor que toda guerrilha tem vocação libertária. Muitas vezes, grupos rebeldes armados, independentemente da sua extração social, religiosa ou política, respondem, na verdade, a uma índole desumana e genocida.

Em terceiro lugar, notem: se um ditador no mundo árabe mata em guerra civil seus compatriotas, isso resulta em enormes manchetes planetárias. Porque afeta as fontes abastecedoras de petróleo, porque desestabiliza poderosos interesses monopolistas internacionais e porque - ao fim e ao cabo - abala as estruturas de Wall Street. Ao contrário, um morticínio de proporções devastadoras e desconhecidas na história humana, como tem acontecido em algumas regiões cruciais da África negra, é objeto do mais solene desinteresse por parte dos meios de informação. Africanos anônimos e inocentes morrem aos borbotões, são despejados em covas coletivas como animais, isso não atinge as franjas do capital financeiro internacional - o mundo silencia.

Talvez o grupo Invisible Children não estivesse preparado para uma tarefa política tão grandiosa como a que pretendeu, mas o video foi visto em 6 dias por 83 milhões de pessoas. O líder do Invisible Children não suportou o estresse e está hospitalizado. Não importa. Sua façanha é indesmentível: derrotou, sozinho, de forma acachapante, décadas de  indiferença e desatenção da mídia internacional em relação à África. Por isso, ele não será perdoado. É irrefutável: nenhum veículo de comunicação conseguiu alcançar, em qualquer momento da história da imprensa mundial, a eficácia, a força e a instantaneidade da sua mensagem. 
Esse fato, por si só, já seria motivo suficiente para ver a campanha desse vídeo como minimamente interessante.

Claro: a campanha é desideologizada e não avalia corretamente as forças em conflito em Uganda. Há torpeza dos dois lados, o enfoque escolhido estreita o sentido dos acontecimentos. Talvez o Invisible Children seja, aliás, o mais ruidoso exemplo de um fenômeno típico do nosso tempo, um fenômeno novo mas hoje muito recorrente na internet: uma espécie de ativismo político e filantrópico de brando engajamento, um novo idealismo juvenil desideologizado e "low profile", que alguns chamam de eslaquetivismo (slacktivism).

Alega-se que o caso Kony está defasado. Há poucas coisas que tenham me aterrorizado tanto quanto o que aconteceu em Ruanda em 1994 e o mundo não viu. O extermínio brutal de 800 mil seres humanos em uma jornada de sangue, devastação e morte: o massacre dos Tutsi na região norte do país, próximo à fronteira de Uganda. Isso está defasado?
Realmente: a morte é algo defasado e esquecido na África. 
E, sim, é verdade, esse vídeo é uma produção de alto custo. Sim, o grupo Invisible Children é constituído de jovens surfistas  de cabelos loiros e olhos azuis que vivem sob o sol do sul da Califórnia. Sim, a maior parte do dinheiro das doações se destina à confecção do video, à manutenção da instituição Invisible Children e à propaganda. Sim, apenas 37% dos recursos são empregados diretamente em assistência social na África. No entanto, é preciso dizer: não obstante todas essas verdades, os meios de comunicação poderiam ter aproveitado essa oportunidade ímpar para abrir o foco de suas lentes sobre a África. Mas não o fizeram. Preferiram chamar a atenção para as falhas do Invisible Children e esquecer o sofrimento infinito de mulheres que têm seu clitóris extirpado na infância e crianças que carregam metralhadoras aos 12 anos de idade. 

Se George Clooney protesta em frente à Embaixada do Sudão, o foco é todo em George Clooney. E as crianças que motivaram o seu protesto? Uma criança de nove anos teve suas mãos estraçalhadas por uma bomba, as crianças estão sendo sequestradas, violentadas e mortas pela fome, nas montanhas sudanesas de Nuba, no estado do Kordofan, próximo à fronteira do recém-emancipado Sudão do Sul. Quem esclareceu isso? Por um processo de abstração, tudo se explica e se resolve na foto do ator americano, acompanhando seu pai. O resto é apenas o resto. O resto é um continente perdido, esquecido e abandonado.
Desse modo jamais poderemos debater e desenvolver, como nações do mundo desenvolvido e do mundo em desenvolvimento, formas de abordagem e militância internacional baseadas em um prática respeitosa, humanitária e necessariamente não-intervencionista. Um novo modelo de solidariedade que não destrua a autonomia e a autodeterminação histórica das etnias. As falhas do Invisible Children talvez sejam produto da ausência desse debate.
De minha parte, prefiro entender o que esses jovens fizeram como um chamamento. Como um alerta. Um alerta que nos obriga a todos a lançar um novo olhar sobre a África. Um alerta que nos obriga, queiramos ou não, a tentar compreender o incompreensível. Obriga-nos, sim, queiramos ou não, a enxergar o horror inominável: o invisível holocausto a que um enorme contingente humano pobre e desprotegido da África negra vem sendo submetido.